30.10.04

 

Portugal no Contexto Político da Península Ibérica

O tema, periodicamente surgido na Comunicação Social (os media, plural latino de medium, meio, em português) da posição de Portugal, em face das relações das diversas autonomias espanholas, com o seu poder central em Madrid, foi no sábado passado (23-10-2004), abordado por um colunista do Expresso, Jorge Fiel, de seu nome.

Dele tenho já lido interessantes artigos publicados naquele semanário, e este, em particular, merece, a meu ver, atenção especial, pela sua oportunidade e pelo ângulo pelo qual foi abordado, numa perspectiva argutamente portuguesa.

O artigo de JF tem na verdade alguma originalidade, na forma como tenta intuir um hipotético processo de desintegração da unidade do estado espanhol, ameaçada pelo desejo permanente de uma progressiva autonomia das diversas Regiões e simultaneamente prejudicada pela obssessão centralista de Madrid.

Por contraste, alguns portugueses mais acomodados ou menos conscientes tendem a ver Madrid como uma atracção fatal, contra a qual, dizem, será muito difícil lutar, sobretudo quando lhes falta a coragem ou a honra para defender um património que herdaram de gerações combativas e que a Constituição manda preservar, na dignidade em que o receberam, com a manutenção da sua soberania.

Subvalorizam habitualmente estes nossos compatriotas as vantagens constituídas de um multi-centenário Estado unitário assente na sua forte homogeneidade : na Língua, na raça, no credo e no culto de uma tradição vivida e reconhecida como tal. Este valioso trunfo, muitos o desejariam possuir para com ele forjar a sua própria projecção exterior. Valerá, por conseguinte, a pena sublinhá-lo, para lhe dar o relevo justificado.

No caso dos nossos vizinhos peninsulares, as elites das diversas Autonomias parece não terem ainda concluído, em definitivo, qual o enquadramento político organizativo que mais lhes convém para se afirmarem perante Madrid-Castela, que pode até não contemplar a separação política.

O processo de uma eventual aceleração da desintegração espanhola, induzida pelas pressões autonómicas, conscientes ou não da sua delicadeza, tem os seus riscos, porque pode acordar os demónios da Guerra Civil de 1936-39 e encontra um obstáculo importante no seio da Forças Armadas espanholas, tradicionalmente avessas a qualquer desmembramento do Estado e sempre desconfiadas das Autonomias.

Por isso, é mais previsível que a desintegração, a ocorrer, se faça de um modo lento, progressivo, em que a paciência e a habilidade dos políticos das Autonomias serão determinantes.

A persistente actuação política de Pujol é o exemplo mais elucidativo deste propósito estratégico. Como modelo, pode logicamente comunicar-se às demais autonomias, a começar à Valenciana.

O caso basco, ainda que com forte individualização na peculiaridade do seu povo, é muito delicado e mesmo perigoso, pela impetuosidade, por vezes imprudente, dos seus líderes e pela existência de uma franja extremista, radical, a ETA, que suscita geral reprovação no restante corpo espanhol.

Os casos da Galiza e da Andaluzia são ainda pouco expressivos quanto aos seus propósitos de separação. Na Galiza, o processo da eventual separação enferma até de uma clara desvantagem, pela existência, há muitos anos, de um seu líder claramente pró-castelhano e, na Andaluzia, o processo também parece de remota exequibilidade, por haver nesta região diminuta base de diferenciação cultural e reduzido apoio popular para um verdadeiro desígnio separatista.

As restantes autonomias não me parece que alimentem sequer propósitos separatistas, carecendo esses eventuais anseios de qualquer base no plano económico ou de qualquer suporte linguístico-cultural, para além de não possuirem tradição de luta visível.

Neste contexto, politicamente incerto, Portugal poderia e deveria, desinibidamente, traçar a sua própria estratégia, mas, para isso, seria necessário, em primeiro lugar, anular certas inclinações pró-espanholistas e certos complexos de inferioridade, muito disseminados entre as nossas elites políticas e económicas ou empresariais.

Tudo isto requer inteligência para conceber e coragem para executar qualquer imaginável plano, recursos escassos, em qualquer lado, como sabemos, a fortiori, em Portugal, e que, naturalmente, não germinam em terreno inculto, impreparado para receber a boa semente.

O tema, pela sua permanente actualidade, virá com certeza a ser retomado com maior desenvolvimento em futuras ocasiões.

Gutta cavat lapidem

AV_ Lisboa, 24-10-2004



17.10.04

 

A Arte de Dizer Frases Assassinas

Com a mesma «subtileza assassina» com que, há uns anos, M. Soares apoucou o então Primeiro-Ministro de Portugal e Secretário-Geral do Partido Socialista, António Guterres, quando inquirido sobre as qualidades do seu correligionário, destacando apenas o seu desembaraço discursivo, em particular nas línguas estrangeiras, numa altura em que AG e o partido por si conduzido já tinham ganho eleições legislativas e autárquicas, pondo fim a um período de larga hegemonia do PSD de Cavaco Silva, agora, também, ao referir-se à figura de Marcelo Rebelo de Sousa e ao episódio que este protagonizou, com a sua saída da TVI, M. Soares, de forma requintadamente perversa, declarou que MRS tinha muitas qualidades, mas, entre elas, a coragem não seria uma das primeiras.

Nesta resposta está toda a mestria florentina do velho e sabido político que ele é, capaz de dizer, não dizendo, insultar, não insultando, revelando a sua longa prática e suma perícia, na controversa arte da disputa política, de que ele é o último sobrevivente no activo da plêiade de dirigentes políticos revelados após a revolução de 1974.

MRS deve, pelo visto, pertencer ao pequeno universo dos ódios de estimação de MS, homem, como se sabe, muito amigo de seu amigo, pontualmente pagador de favores e simpatias, mas inexorável, para com aqueles que, ao longo dos anos, a ele se opuseram ou lhe fizeram frente, de forma continuada, firme e contundente.

Estão, certamente, neste grupo jornalistas menos dados a trocas de cortesias, como o Joaquim Vieira, o Freire Antunes, hoje dedicado à historiografia contemporânea e alguns – poucos – mais, que altivamente rejeitaram o seu abraço político.

Haverá, hoje em dia, outros abraços tão ou mais fortes ou asfixiantes que aquele e, analogamente, escasseiam os que disso se apercebem, para consciente e inequivocamente a eles se escusarem, cultivando, em contraponto, um espírito de probidade no exercício da profissão de informar os cidadãos, que deveria constituir alto exemplo proposto à emulação geral.

Dirão os cínicos que o mundo é o que é e não o que gostaríamos que ele fosse.

Se é certo que o espírito de sacrifício por ideais colectivos vai rareando, no amolecido mundo ocidental, moralmente debilitado por décadas sucessivas de prosperidade material, tendência, como se vê, agravada pela persistente propaganda dos arautos da Super Gestão Globalizada, que não cessam de acirrar os impulsos individualistas e egoístas da raça humana, também se reconhecerá que, desta doutrina, muita ganga sobrevirá, muita selvajaria e muita indiferença social, que hão-de fatalmente transformar, por largo tempo, as sociedades modernas em palcos da fátua e inútil exibição, por um lado, e, da feroz competição, por outro, podendo vir a enterrar-se de vez os princípios nobres e belos da convivência fraterna, como preconizado na doutrina desse desprezado e esquecido humanismo cristão há dois milénios surgido.

Aparentemente, ninguém parece preocupar-se com estas tendências nocivas que se multiplicam no nosso tempo, para além de um diminuto número de pessoas, algumas, por dever de assumido compromisso religioso, outras, por forte propensão natural das suas consciências, reforçada no diuturno contacto com a cultura humanística da nossa civilização judaico-cristã, que, pese a incoerência com que tem sido vivida ao longo dos séculos, tantos e tão diversificados valores produziu e que, para qualquer mente equilibrada, não sofre comparação com as suas pretendidas rivais.

Na verdade, nada parece mais desmentido, na moderna cultura ocidental prevalecente, do que a doutrina cristã, sobretudo na sua vertente moral, a única que desperta disputas no presente, encerrado, definitivamente, julga-se, o período conturbado das heresias e das dissensões teológicas.

Do que atrás fica dito, pode ressaltar-se a importância, na política também, da ética, cristã ou não, embora, por muito laica que esta última no Ocidente se afirme, dela seja sempre devedora, por séculos vividos sob a sua fecunda influência, por mais que isso incomode as agitadas mentes fracturantes apostadas numa divertida criação de crises artificiais.

O tema da Ética na Política, como de resto nas Empresas, realidade ainda mais desconhecida e desprezada, a necessitar de urgente atenção, sob pena de grave retrocesso social, merecerá novas abordagens, aqui e, creio bem, em muitos outros locais, tantos os atropelos que se cometem, na mais completa e surpreendente impunidade.

Quousque tandem...

Gutta cavat lapidem.

António Viriato_Lisboa, 17 de Outubro de 2004


1.10.04

 

O CERN – Exemplo de Cooperação Internacional

Com a efeméride adiante evocada, vou procurar fugir ao influxo demasiado crítico, rezingão e azedo, que tende a generalizar-se na blogosfera e no nosso convívio quotidiano.

Este sentimento dominante, contudo, não nasce só do nosso espírito recalcitrante, mas alimenta-se dos múltiplos motivos de desagrado, colhidos a cada passo, na vida dos cidadãos, que, apesar da forte alienação envolvente, conservam a característica pensante, persistindo na velha determinação de entender o mundo que os rodeia.

Cumpre, no entanto, lembrar que alguns comuns mortais, como nós, apesar das circunstâncias adversas, conseguem romper horizontes, fazer coisas, construir algo de válido e duradouro e nesses exemplos nos devemos concentrar, para não cairmos num contexto de lamúria permanente, destilando diatribes sem consequências práticas, para além do pequeno prazer que possamos retirar das nossas meditadas indignações.


Esta observação, porém, não significa que desculpemos ou absolvamos os erros e os desacertos dos responsáveis maiores que nos governam, desde logo porque estes, de forma oportunista, tomariam o nosso silêncio por assentimento comprovado.

Cá estaremos sempre, portanto, tão atentos quanto possível, para os verberar, quando o merecerem e elogiá-los também, quando for caso disso, sem complexos, como cidadãos conscientes, não isentos da nossa quota de responsabilidade naquilo que censuramos.

Infelizmente, os exemplos merecedores de encómios escasseiam imenso, tornando difícil a alteração do nosso estado de espírito. Por isso devemos aproveitar as raras oportunidades que como pepitas riscam o nosso monótono quotidiano.

Ontem, 29-09-2004, um jornal diário português – O Público – trazia como assunto de destaque a comemoração dos 50 anos de existência, em Genebra, na Suíça, junto à fronteira com a França, do CERN, o maior laboratório do mundo de Física das Partículas, que, neste lapso de tempo, já produziu vários Prémios Nobel e desenvolveu intensa actividade de investigação científica nos mais variados domínios da Ciência

Este contínuo trabalho de investigação está na base de muitas aplicações tecnológicas de grande benefício social, como os famosos exames TAC ( tomografia axial computorizada), instrumento hoje indispensável nas modernas unidades hospitalares, para despiste de inúmeras doenças que ameaçam a nossa vida.

Nasceu esta grande instituição – o CERN – num período de enorme escassez de recursos, quando a Europa, ainda exangue de uma devastadora confrontação, tentava recuperar energias e, no imediato, estancar uma grave sangria de cérebros, que corria para os EUA, então pletóricos de força e de prestígio, na guerra como na ciência, depois de terem sido os principais obreiros da vitória sobre o Nazismo, na Europa, e sobre o fanatismo autocrático japonês, no Pacífico.

A proficiente cooperação entre os inicialmente 12 estados europeus fundadores, incluindo os recentemente derrotados, Alemanha e Itália, permitiu criar, em poucos anos, quase me atreveria a dizer, ex-nihilo, uma formidável unidade científica que se tornou no reputado centro de investigação que hoje todos conhecem e admiram.

Convém dizer o significado do acrónimo CERN – Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire/Conselho Europeu para a Investigação Nuclear – em língua francesa, nesses anos ainda muito utilizada nos areópagos científicos e políticos internacionais.

Posteriormente, devido às aplicações polémicas, sobretudo militares, deixou de se falar no termo nuclear, mas o acrónimo permaneceu e, por ele, o grande laboratório se tornou mundialmente conhecido.

Acresce, como facto também positivo, hoje surpreendente, que o seu primeiro Director-Geral foi um Físico americano, galardoado com o Nobel, em 1952, – Felix Bloch – e o principal animador inicial do empreendimento foi, igualmente, um Físico americano, também prémio nobel, em 1944, Isidor Rabi, vincando bem a excelente cooperação então existente entre os países democráticos dos dois lados do Atlântico, entendidos na fase da guerra, como depois no período da paz.

No CERN se realizou também a primeira experiência da World Wide Web, a popular www das nossas actuais navegações virtuais, notável invenção de um inglês, Tim Berners-Lee, mais tarde condecorado pela Rainha de Inglaterra, com a distinção de Sir.

Neste caso, verdadeira distinção, ao contrário do que tem sucedido com as mais recentes condecorações, falhas de dignidade, sobretudo da parte de quem as outorga, pela falta de categoria moral das personalidades escolhidas, o que, de resto, não deixa de ser coerente com a presente onda de desprestígio que atinge a monarquia britânica, fortemente fustigada por uma série negra de escândalos, nos últimos anos.

Trabalham actualmente no CERN milhares de investigadores, nos mais variados projectos, envolvendo centenas de universidades e institutos científicos, num magnífico exemplo de entendimento supranacional, no interesse colectivo, que nos cumpre desenvolver e aprofundar, sublinhando esta fecunda cooperação para o bem comum, num tempo estranho, que privilegia o êxito individual e imediato, sem sequer curar da lisura de processos para o alcançar.

A Europa, que ergue estes louváveis exemplos, merece toda a confiança e colaboração, como a que durante décadas criou as sociedades de bem-estar, ordeiras, limpas, harmoniosas, culturalmente avançadas e socialmente equilibradas, em que dava gosto trabalhar, na dignidade geralmente respeitada, sem as diferenças ofensivas, em privilégios e salários, que hoje se vão tornando correntes, na imitação de modelos ditos de sucesso rápido, com baixos custos, como nos apregoam os actuais teóricos da Super Gestão Globalizada, depredadora, irracional e largamente perdulária.

Para estes modelos sociais anarquizados que nos propõem, tidos por simplificados, aligeirados, mas no fundo esvaziados de direitos e de garantias, não entusiasma trabalhar e talvez radique aqui a causa profunda da presente quebra de produtividade da economia europeia.

Aqui, na Europa, estes descaracterizados modelos encontram, compreensivelmente, forte oposição e descrença generalizada.

Quem justamente conheceu as sociedades de bem-estar europeias, das décadas do pós-guerra, dificilmente se entusiasma com os pretensos modelos económico-sociais americanos, latino-americanos ou asiáticos, assentes em cidadanias precárias, conformadas, deprimidas, de profissões mal remuneradas, politicamente anuladas, pelo espectro da iminente perda do emprego, agravado pela incerteza de encontrar outro meio de subsistência.

Para esta realidade, que, acredito, nunca satisfará os povos europeus, depois de décadas de conhecida prosperidade, há que encontrar antídotos adequados, buscando um equilíbrio perdido, sem o que caminharemos para uma situação de luta social desenfreada, sem solidariedades assumidas, num salve-se quem puder, de consequências nocivas imprevisíveis.

Tive, há uns anos já, a feliz oportunidade de visitar o CERN, em Genebra, ainda que numa breve manhã, vindo, madrugadoramente, de Baden-Zurique, quando me encontrava na Suíça, numa acção de formação profissional, durante a qual aproveitava os fins-de-semana para viajar, desde horas muito matutinas, por este belo e cuidado país, comprovando e fruindo a afamada eficiência e pontualidade da sua prestigiada Companhia de Caminhos de Ferro.

Desde então me tornei um admirador confesso do conforto, da organização e da eficiência da sociedade suíça, que há centenas de anos vive em paz e prosperidade, apesar dos seus diversos idiomas e credos religiosos, tudo congraçado na sua vetusta, mas bem provada, federação política.

Muito haveria que aprender com este paradigma de organização política e social, em lugar de desdenhar das características da sua gente, tida por fechada, desconfiada dos estrangeiros e por outros mimos, na maneira acintosa, como uma certa elite latina, supostamente bem-pensante, costuma referir-se à Suíça, denunciando no acinte, aliás, um bem fundo despeito.

Ontem, numa pequena excursão, pelos chamados grandes diários internacionais, não encontrei nenhum relevo informativo especial sobre a importante efeméride da criação do CERN.

O jornalismo português, todavia,logrou aqui honroso destaque, com a extensa evocação do Público, por um dia, subalternizando as trapalhadas políticas, os escândalos e os crimes vulgares, desgraçadamente matéria preferida de vastas multidões mantidas neste gosto mórbido, por gente sem escrúpulos, que julga com isso satisfazer uma exigência do Mercado, na sua peculiar linguagem, pseudo-moderna e pseudo-científica, exibida já com natural despudor.

Entretanto, pese a presente adversidade, não nos deixemos acabrunhar e levantemos o ânimo, porque atrás do tempo, tempo vem.

Sursum Corda.

Nil desperandum...

Post nubila Phoebus.

Nulla dies sine linea.


AV_Lisboa, 30-09-2004





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